segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Que farei sem este armário?


Dois poemas neste livro parecem comunicar entre si, mesmo se estão longe em termos de forma e de paginação: “As Bodas de Caná” (pág. 7) e “Armário Antigo” (pág. 64).

No primeiro, José António Almeida  (n. 1960) canta loas ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, do ponto de vista do que seria a inexistência desta lei: “Que podem dois rapazes como nós/ senão viver assim dissimulados/ e procurar sorrir desentendidos/ a perguntas que ficam sem resposta./ Ninguém abençoa a nossa aliança// – nem aplauso, nem música, nem vinho.”

No segundo poema, metáfora do fim da ocultação gay, dois versos lançam uma pergunta desconcertante: “Agora que enfim dele nos livrámos,/ que vamos nós fazer sem esse armário?”

Arco da Porta do Mar, agora editado pela &Etc e com ilustração da capa de Luís Manuel Gaspar, sucede imediatamente a Obsessão (2010) e a O Casamento Foi Sempre Gay e Nunca Triste (2009), dois livros de poemas que avultavam em activismo e homoerotismo. São marcas de um autor que começou a publicar em 1984 e há muito se apresenta fora do armário.

Desta vez, porém, José António Almeida aprofunda o tom, transformando-o; a espaços, pornográfico: “Sombra longa de faca que foi círio/ vermelho numa tenda toda branca” (“Velho Poeta em Maus Lençóis”, pág. 17); “Secreta flauta tocas, pastorinho/ – e no mais profundo de mim mesmo sei/ que sou tua, pastor, ovelha negra.” (“Ovelha Negra”, pág. 24); ou ainda no apenso em prosa “Corandel”, no fim do volume: “Talvez a poesia seja um noivo ou um mistério que nunca se abandona ou de nós, por magna razão desconhecida, não desiste, se acaso, ainda que por uma única e bastante fortuita vez, no passado mais pretérito lhe pertencemos a ele, esse noivo ou mistério, pelo nosso rabinho, devagar e direito e com muita humildade, docemente se entranhou” (pág. 80).

No mesmo registo, “Releitura de Kavafis nos Trópicos” (pág. 46) é uma rara composição sobre a vida interior numa sauna gay: “Vermelho fulgor, húmido, tangível,/ do deleite carnal sem atavios/ trepando por sorrisos e blandícias// em cave corroída de bolor./ Com o musgo do sexo na parede/ da casa abrasadora desse bairro,/ decrépito bordel onde provei/ com fúnebre sabor e passiflora/ migalha de torpor do paraíso.”

É um livro culto, com densas camadas a pedirem exploração atenta, mas talvez carregue um excessivo adorno de epígrafes, dedicatórias e citações (inglês, francês, italiano). Trabalho de filigrana que José António Almeida parece justificar em “Corandel”: “Não sei, nem nunca saberei, definir poesia. Mas a palavra que para mim, apesar de tudo, está mais próxima dela é a palavra obsessão.” Bruno Horta

[texto publicado na Time Out Lisboa de 8 de Janeiro de 2014, p. 65]